Atendendo a pedidos,
decidimos publicar o texto (integral) que foi lido pela clubista Vanessa
Cristina no Clube
de Março, uma contribuição da nossa coordenadora Kleris Ribeiro para o
encontro; entenda o contexto aqui. Compartilhe você também em suas redes sociais.
Contém spoilers do livro discutido*
E
aí que mora o problema: quando eu percebo. Depois que a gente percebe, não dá
mais pra ignorar, e começa a acontecer de a gente perceber mais ainda.
Daniel
Bovolento, Por Onde Andam As Pessoas
Interessantes?
Oi,
pessoal.
Estava
pensando em como me “infiltrar” na conversa pra levantar umas questões
importantes sobre esse livro, já que até então não tenho podido participar das
reuniões com vocês *dor no coração*. A ideia da Vanessa de colaborar com um
texto foi mara (OBG, Nessa ❤, também pela leitura)
e espero contribuir um pouco com algumas reflexões.
Fiz
a leitura de Belo Desastre como muitos ainda no ano de lançamento, 2012, e
naquela época “gostei”. Apesar do quê de clichê, ainda vi um e outro problema,
porque se tem alguma coisa que podemos admitir sobre a relação Abby e Travis, gostando ou não dela, é que ela é
“conturbada” – a própria sinopse é honesta quanto a isso. Lembro que também
muito se questionava sobre a mocinha Abby, por aceitar as loucuras do Travis, e
sobre como ela “não se resolvia”. É inegável que o Travis tem uns problemas e a
história nos leva a crer que o amor vai resolver, SE a mocinha ceder. Sempre. Só isso
já classifica como questionável.
Acho
que nem preciso dizer que na releitura pra este mês, tudo mudou. Tem muito mais
pontos complicados – e, pior, tão sensíveis que podem passar pela gente sem
sequer darmos conta. Porque é assim que a relação tóxica funciona. São as
coisas pequenas que fazem a avalanche acontecer. Não vou me deter aqui à
relação do casal – que é abusiva e doentia, ponto – mas à personagem principal
e narradora desta história, que nos mostra uma noção de realidade mega
bagunçada pelas relações ao seu redor.
A
autora tentou de várias maneiras nos fazer engolir o que ela, como pessoa,
imagino, também engoliu. Tem algumas coisas na trama que estão ali pra cumprir
um papel único (mocinha e bad boy, o
garoto de ouro pra contrapor o mocinho bad doy, a mocinha que não é tão donzela,
uma pessoa “boa” pra ‘consertar’ a “ruim”, passados complicados pra justificar
uma e outra coisa, usar cenas de perigo pra aumentar a adrenalina, o amor
sobreviver a barreiras, o cuidado e zelo das pessoas ser um alento aos amores
amargos, variadas coisas e cenas pra tapar buracos da própria trama, etc) e
isso tudo acaba nos levando a conflitos bem menores, esquecendo que o que deve
importar é a felicidade e a liberdade da personagem/pessoa. Tudo o que Belo
Desastre mostra é que a felicidade de Abby sempre vai ser condicionada. E nunca
respeitada. Se posso resumir a sensação
dessa releitura em poucas palavras é: quero
salvar a Abby #TeamAbbyLivreEFeliz
Vamos
voltar um pouco essa história. Abby cresceu em meio a jogos, apostas, dinheiro,
bebidas. Praticamente foi criada pelos pais de America, sua melhor amiga. A mãe
de Abby é basicamente inexistente nessa trama, já que se foca mais no pai
problemático que vai atrás dela. Abby foi considerada pelo pai um “trevo de
quatro folhas”, até que ela superou o próprio e ele se virou contra ela. Ou
seja, ela nunca poderia ter “superado o mestre”, e por ter feito isso, iria
sofrer as consequências pra sempre, porque “família é família” (outro mito),
você gostando disso ou não. O Mick vai ser usado mais pra criar um conflito na
cabeça dela por ser uma vaga lembrança do que o Travis pode trazer, mas que, no
final, vai se mostrar “diferente” – embora esse pai também mostre como a
personagem principal fica bastante vulnerável quando entra em conflito sobre o
que quer e o que é socialmente “certo”. Ou seja, desde sempre ela “se ferra”
porque não consegue manter uma postura. Mas, chego lá.
Para
recomeçar a vida, Abby escolheu sair de sua cidade, tão marcada pela pressão
que sentia do pai e das pessoas que sempre a apontavam. America, sua melhor
amiga, abre mão de sua vida (?????) e segue Abby nessa jornada. O tempo todo
Abby diz que não quer voltar a viver aquilo de Wichita, não quer se envolver
com nada nem ninguém MINIMAMENTE parecido. Mas não é que Meri sempre encaminha
ela pro lado oposto do que quer? Vamos ver: foi America que levou Abby pra luta
ilegal onde conheceu Travis, foi America que quis juntar o primo de Shepley com
a amiga, foi America que decidiu ficar com o namorado no apartamento e arrastou
a amiga... e olha que ainda cheguei na história da aposta.
Ah, mas elas fizeram um
pacto de nunca saírem sozinhas. A Meri era melhor amiga dela, queria vê-la
feliz, conhecer novas pessoas. Será mesmo? E pra isso
precisava passar por cima das vontades de Abby? Precisava colocá-la nas
situações mais desconfortáveis? Meri
abriu mão da vida dela pra ajudar a Abby. Será que a Abby deveria dever a
vida por isso?
Fato
é que quando se pensa em relacionamentos abusivos e/ou nocivos, costuma-se
focar em relacionamentos entre casais. Mas acontece em qualquer relacionamento
– amoroso, familiar, entre amigos, outros – e, bem, a gente cresceu sem saber
dessas coisas. Nunca fomos treinados para saber o que é tóxico na vida. Falha
da humanidade. É por agora, na era da informação, que internet, exercícios de
autoconsciência, vítimas falando a respeito e militâncias têm trazido isso à
tona. E preciso dizer: a Meri é um raio de pessoa tóxica! Das mais silenciosas!
Há cenas e mais cenas que mostram isso. Abby várias vezes disse não a ela. E não
foi respeitada.
E,
por incrível que pareça, temos a Meri contando seus reais motivos de fazer o
que fazia. A história não explora isso muito bem, já que quer se centralizar no
romance, mas é algo a se pensar. Tem um momento que a Meri diz que sempre queria
que elas ficassem juntas, cada uma com um par, e ainda melhor se esses pares
delas fossem chegados, como irmãos e primos. Então America conheceu Shepley,
que tinha um primo. Não importava o quão desvairado era o Travis, America
empurrou isso até o fim – até mesmo responsabilizou a amiga por não conseguir
“consertar” o cara. E, caraca, ela atiçava. Jogava lenha na fogueira (causava o
descontrole de Travis pra provar que ele gostava da amiga e a amiga ceder),
fazia chantagem emocional (com o Shepley também), acuava, coagia, não ligava
pros sentimentos de Abby – se sentiria desconfortável ou não – enfim, ela
simplesmente deixava acontecer. Às vezes parecia que se arrependia. Mas aí
jogava a culpa na Abby.
Aliás,
todo mundo joga a culpa na Abby pra tudo – pelo fim da sorte do pai, pelos
conflitos e até términos de relacionamento dos outros. Há um momento que Travis
bate “sem querer” na namorada e a culpa porque ela estava muito perto quando
ele batia em outro cara (ou mesmo porque a Abby desobedeceu ele).
E a Abby que não faz
nada, gente? Aí que tá. Infelizmente, ela dá poder às
pessoas pra fazerem o que elas quiserem. Mesmo quando ela diz CLARAMENTE não.
Ela não se sente capaz porque provam pra ela que ela não é capaz. Ou que é
louca. Ou que não está vendo as coisas realmente. Que não está considerando os
sentimentos dos outros. E ela cede. Porque, imagino, que tenha medo de
decepcionar pessoas. Que ela devia suprimir o que sente, pra agradar pessoas.
Porque é mais fácil do que lutar contra. Porque toda vez que ela tenta lutar,
vem as pessoas que ela ama passar por cima dos ideais dela. Que a felicidade
dela devia ser fazer outras pessoas felizes. E aí vem toda aquela história de
se culpar a vítima (!!!!), porque é mais fácil atribuir a ela (????). Qualquer
argumento que se use de medo (alusões a abandonos ou violência), vergonha
(lista grande!), ou culpa (transferência de culpa principalmente), já começa
errado. Pode-se dizer assim que todo mundo começou errado com Abby, desde seus
pais. É de dar uma dorzinha no coração mesmo.
É
interessante (e coincidente) que o Travis, em dado momento, fala: “Você está
agindo como se eu estivesse pedindo pra você atear fogo em si mesma” (foi
quando ele pediu pra Abby ir para a Ação de Graças da família Maddox, sendo que
eles tinham terminado). E é exatamente isso: é a pessoa atear fogo em si, pra
manter alguém aquecido. É sufocante. A Abby se sente sufocada várias vezes, mas
não é que sempre tem alguém pra convencê-la do contrário? De que é exagero?
Não
é exagero, não é frescura e não é coisa da cabeça dela. São armadilhas. Ciclo
vicioso e alguns comportamentos nocivos mais silenciosos que outros. Dentre
muitos, cito aqui: gaslight (manipulação pra fazer a vítima parecer louca ou
incapacitada, até perder a noção da própria realidade), isca (uma provocação
pra desestabilizar a pessoa), culpas irracionais, chantagem emocional, senso de
direito, narcisismo (quando se crer que o outro deve servir a si porque fez
algo “merecedor”), etc. Aqui falo do Travis, da Meri, do Mick (deixei um link
no evento para quem quiser se informar mais). A Abby, claro, também não é essa
pessoa perfeita, também teve uns comportamentos questionáveis (como só lembrar
do Finch quando não estava na bolha Travis-America-Shep ou ver outras mulheres
como inimigas), mas nada tão “tão” nocivo quanto outros personagens (opinião
minha).
Não
quero me alongar mais que isso, porque já tem páginas de TEXTÃO, então pra
encerrar vou deixar aqui umas perguntinhas e uma reflexão final.
- Se a Abby dissesse não, permanecesse em sua posição e se negasse a fazer coisas que lhe pediam – em qualquer situação do livro – o que as pessoas fariam? Podendo ser Meri, Travis ou Mick (faça sua escolha).
- Se a Abby fosse solidária com as ex garotas do Travis ou mesmo com outras garotas da faculdade (como sua colega de quarto, Kara), no sentido de não tê-las como inimigas, como as pessoas encarariam a opinião dela?
- Se Abby colocasse a culpa que tanto lhe jogam no lugar certo (no da pessoa que fez errado), o que iria lhe acontecer?
- Se Abby quisesse ter um amigo fora da roda fechada e esse amigo não fosse gay, o que aconteceria com ela?
- Se Abby decidisse mudar de curso ou universidade, o que ou quem ela teria que enfrentar? Quem a apoiaria?
- Se Abby tivesse escolhido o Parker ou qualquer outro carinha da universidade, o que teria acontecido com ela?
- Por que que é ela quem sempre tem que ceder? Por que ela tem sempre que perdoar? Por que ninguém é compreensivo com ela?
- Por que ninguém vê que ela pode resolver as coisas dela sozinha?
- Se VOCÊ fosse a Abby e tivesse que gastar todas as suas energias pra fazer algo que quer (algo simples até) e tivesse que justificar pra Deus e o mundo, como VOCÊ se sentiria?
Outro
simples exercício é escolher uma cena e inverter a situação. Se nessa inversão
houver caso de sexismo (favorecendo a figura masculina), intolerância
(desfavorecendo a figura feminina), difamação, incitação ao ódio ou violência,
sim, é problemático. A grande questão hoje em dia é reconhecer isso. E ao
reconhecer, não se desesperar, pois você não está sozinha(o) e há maneiras de
melhor lidar. O que vemos na maioria dessas situações em que há um
“consentimento” para uma transgressão (de espaço, de poder, de abusos), é o
desejo de ser aceita, amada, respeitada. Podemos nós ter sido abusivos ou ter
sido abusados, em inúmeras situações ou níveis, mas o importante é saber que somos pessoas e podemos ser suficientes.
Essa consciência é que é libertadora.
É
muito difícil que a vítima se dê conta que está vivendo um relacionamento
abusivo. Por isso, a mulher precisa do apoio da família e de amigos que tenham
uma visão de fora e percebam o que está havendo na relação. Para ajudar, o
melhor é fazer a vítima entender, por si própria, que está inserida em uma
relação tóxica. Uma abordagem agressiva e impaciente, que exija percepção
imediata, não adianta: é necessário ajudar a vítima a se questionar e
questionar sua posição dentro do relacionamento. O tratamento com um psicólogo
é o método mais indicado para que uma real mudança aconteça, pois a mulher
precisa compreender profundamente os problemas de sua relação para conseguir
mudá-los.
Beatriz Manfredini e Giulianna Muneratto.
A louca não sou eu @aloucanaosoueu
(instagram)
Obrigada por ler/ouvir até aqui.
Kleris
Ribeiro
Coordenadora de Mídias e Bastidores no Clube do
Livro Maranhão
Veja
fotos
do encontro!
Assista
nos stories um pouco da conversa enquanto é tempo. Nos destaques do instagram @clubedolivroma, procure por
“Encontros”.
Veja outras contribuições aqui
#clubedolivroma
#vemproclube
#maranhãodeleitores
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