25/03/2018

Precisamos falar sobre relacionamentos abusivos


Atendendo a pedidos, decidimos publicar o texto (integral) que foi lido pela clubista Vanessa Cristina no Clube de Março, uma contribuição da nossa coordenadora Kleris Ribeiro para o encontro; entenda o contexto aquiCompartilhe você também em suas redes sociais.


Contém spoilers do livro discutido*

  
E aí que mora o problema: quando eu percebo. Depois que a gente percebe, não dá mais pra ignorar, e começa a acontecer de a gente perceber mais ainda. 
Daniel Bovolento, Por Onde Andam As Pessoas Interessantes?

Oi, pessoal.

Estava pensando em como me “infiltrar” na conversa pra levantar umas questões importantes sobre esse livro, já que até então não tenho podido participar das reuniões com vocês *dor no coração*. A ideia da Vanessa de colaborar com um texto foi mara (OBG, Nessa , também pela leitura) e espero contribuir um pouco com algumas reflexões.

Fiz a leitura de Belo Desastre como muitos ainda no ano de lançamento, 2012, e naquela época “gostei”. Apesar do quê de clichê, ainda vi um e outro problema, porque se tem alguma coisa que podemos admitir sobre a relação Abby e Travis, gostando ou não dela, é que ela é “conturbada” – a própria sinopse é honesta quanto a isso. Lembro que também muito se questionava sobre a mocinha Abby, por aceitar as loucuras do Travis, e sobre como ela “não se resolvia”. É inegável que o Travis tem uns problemas e a história nos leva a crer que o amor vai resolver, SE a mocinha ceder. Sempre. Só isso já classifica como questionável.

Acho que nem preciso dizer que na releitura pra este mês, tudo mudou. Tem muito mais pontos complicados – e, pior, tão sensíveis que podem passar pela gente sem sequer darmos conta. Porque é assim que a relação tóxica funciona. São as coisas pequenas que fazem a avalanche acontecer. Não vou me deter aqui à relação do casal – que é abusiva e doentia, ponto – mas à personagem principal e narradora desta história, que nos mostra uma noção de realidade mega bagunçada pelas relações ao seu redor.

A autora tentou de várias maneiras nos fazer engolir o que ela, como pessoa, imagino, também engoliu. Tem algumas coisas na trama que estão ali pra cumprir um papel único (mocinha e bad boy, o garoto de ouro pra contrapor o mocinho bad doy, a mocinha que não é tão donzela, uma pessoa “boa” pra ‘consertar’ a “ruim”, passados complicados pra justificar uma e outra coisa, usar cenas de perigo pra aumentar a adrenalina, o amor sobreviver a barreiras, o cuidado e zelo das pessoas ser um alento aos amores amargos, variadas coisas e cenas pra tapar buracos da própria trama, etc) e isso tudo acaba nos levando a conflitos bem menores, esquecendo que o que deve importar é a felicidade e a liberdade da personagem/pessoa. Tudo o que Belo Desastre mostra é que a felicidade de Abby sempre vai ser condicionada. E nunca respeitada. Se posso resumir a sensação dessa releitura em poucas palavras é: quero salvar a Abby #TeamAbbyLivreEFeliz

Vamos voltar um pouco essa história. Abby cresceu em meio a jogos, apostas, dinheiro, bebidas. Praticamente foi criada pelos pais de America, sua melhor amiga. A mãe de Abby é basicamente inexistente nessa trama, já que se foca mais no pai problemático que vai atrás dela. Abby foi considerada pelo pai um “trevo de quatro folhas”, até que ela superou o próprio e ele se virou contra ela. Ou seja, ela nunca poderia ter “superado o mestre”, e por ter feito isso, iria sofrer as consequências pra sempre, porque “família é família” (outro mito), você gostando disso ou não. O Mick vai ser usado mais pra criar um conflito na cabeça dela por ser uma vaga lembrança do que o Travis pode trazer, mas que, no final, vai se mostrar “diferente” – embora esse pai também mostre como a personagem principal fica bastante vulnerável quando entra em conflito sobre o que quer e o que é socialmente “certo”. Ou seja, desde sempre ela “se ferra” porque não consegue manter uma postura. Mas, chego lá.

Para recomeçar a vida, Abby escolheu sair de sua cidade, tão marcada pela pressão que sentia do pai e das pessoas que sempre a apontavam. America, sua melhor amiga, abre mão de sua vida (?????) e segue Abby nessa jornada. O tempo todo Abby diz que não quer voltar a viver aquilo de Wichita, não quer se envolver com nada nem ninguém MINIMAMENTE parecido. Mas não é que Meri sempre encaminha ela pro lado oposto do que quer? Vamos ver: foi America que levou Abby pra luta ilegal onde conheceu Travis, foi America que quis juntar o primo de Shepley com a amiga, foi America que decidiu ficar com o namorado no apartamento e arrastou a amiga... e olha que ainda cheguei na história da aposta.

Ah, mas elas fizeram um pacto de nunca saírem sozinhas. A Meri era melhor amiga dela, queria vê-la feliz, conhecer novas pessoas. Será mesmo? E pra isso precisava passar por cima das vontades de Abby? Precisava colocá-la nas situações mais desconfortáveis? Meri abriu mão da vida dela pra ajudar a Abby. Será que a Abby deveria dever a vida por isso?

Fato é que quando se pensa em relacionamentos abusivos e/ou nocivos, costuma-se focar em relacionamentos entre casais. Mas acontece em qualquer relacionamento – amoroso, familiar, entre amigos, outros – e, bem, a gente cresceu sem saber dessas coisas. Nunca fomos treinados para saber o que é tóxico na vida. Falha da humanidade. É por agora, na era da informação, que internet, exercícios de autoconsciência, vítimas falando a respeito e militâncias têm trazido isso à tona. E preciso dizer: a Meri é um raio de pessoa tóxica! Das mais silenciosas! Há cenas e mais cenas que mostram isso. Abby várias vezes disse não a ela. E não foi respeitada.

E, por incrível que pareça, temos a Meri contando seus reais motivos de fazer o que fazia. A história não explora isso muito bem, já que quer se centralizar no romance, mas é algo a se pensar. Tem um momento que a Meri diz que sempre queria que elas ficassem juntas, cada uma com um par, e ainda melhor se esses pares delas fossem chegados, como irmãos e primos. Então America conheceu Shepley, que tinha um primo. Não importava o quão desvairado era o Travis, America empurrou isso até o fim – até mesmo responsabilizou a amiga por não conseguir “consertar” o cara. E, caraca, ela atiçava. Jogava lenha na fogueira (causava o descontrole de Travis pra provar que ele gostava da amiga e a amiga ceder), fazia chantagem emocional (com o Shepley também), acuava, coagia, não ligava pros sentimentos de Abby – se sentiria desconfortável ou não – enfim, ela simplesmente deixava acontecer. Às vezes parecia que se arrependia. Mas aí jogava a culpa na Abby.

Aliás, todo mundo joga a culpa na Abby pra tudo – pelo fim da sorte do pai, pelos conflitos e até términos de relacionamento dos outros. Há um momento que Travis bate “sem querer” na namorada e a culpa porque ela estava muito perto quando ele batia em outro cara (ou mesmo porque a Abby desobedeceu ele).

E a Abby que não faz nada, gente? Aí que tá. Infelizmente, ela dá poder às pessoas pra fazerem o que elas quiserem. Mesmo quando ela diz CLARAMENTE não. Ela não se sente capaz porque provam pra ela que ela não é capaz. Ou que é louca. Ou que não está vendo as coisas realmente. Que não está considerando os sentimentos dos outros. E ela cede. Porque, imagino, que tenha medo de decepcionar pessoas. Que ela devia suprimir o que sente, pra agradar pessoas. Porque é mais fácil do que lutar contra. Porque toda vez que ela tenta lutar, vem as pessoas que ela ama passar por cima dos ideais dela. Que a felicidade dela devia ser fazer outras pessoas felizes. E aí vem toda aquela história de se culpar a vítima (!!!!), porque é mais fácil atribuir a ela (????). Qualquer argumento que se use de medo (alusões a abandonos ou violência), vergonha (lista grande!), ou culpa (transferência de culpa principalmente), já começa errado. Pode-se dizer assim que todo mundo começou errado com Abby, desde seus pais. É de dar uma dorzinha no coração mesmo.

É interessante (e coincidente) que o Travis, em dado momento, fala: “Você está agindo como se eu estivesse pedindo pra você atear fogo em si mesma” (foi quando ele pediu pra Abby ir para a Ação de Graças da família Maddox, sendo que eles tinham terminado). E é exatamente isso: é a pessoa atear fogo em si, pra manter alguém aquecido. É sufocante. A Abby se sente sufocada várias vezes, mas não é que sempre tem alguém pra convencê-la do contrário? De que é exagero?

Não é exagero, não é frescura e não é coisa da cabeça dela. São armadilhas. Ciclo vicioso e alguns comportamentos nocivos mais silenciosos que outros. Dentre muitos, cito aqui: gaslight (manipulação pra fazer a vítima parecer louca ou incapacitada, até perder a noção da própria realidade), isca (uma provocação pra desestabilizar a pessoa), culpas irracionais, chantagem emocional, senso de direito, narcisismo (quando se crer que o outro deve servir a si porque fez algo “merecedor”), etc. Aqui falo do Travis, da Meri, do Mick (deixei um link no evento para quem quiser se informar mais). A Abby, claro, também não é essa pessoa perfeita, também teve uns comportamentos questionáveis (como só lembrar do Finch quando não estava na bolha Travis-America-Shep ou ver outras mulheres como inimigas), mas nada tão “tão” nocivo quanto outros personagens (opinião minha).

Não quero me alongar mais que isso, porque já tem páginas de TEXTÃO, então pra encerrar vou deixar aqui umas perguntinhas e uma reflexão final. 

  • Se a Abby dissesse não, permanecesse em sua posição e se negasse a fazer coisas que lhe pediam – em qualquer situação do livro – o que as pessoas fariam? Podendo ser Meri, Travis ou Mick (faça sua escolha).
  • Se a Abby fosse solidária com as ex garotas do Travis ou mesmo com outras garotas da faculdade (como sua colega de quarto, Kara), no sentido de não tê-las como inimigas, como as pessoas encarariam a opinião dela?
  • Se Abby colocasse a culpa que tanto lhe jogam no lugar certo (no da pessoa que fez errado), o que iria lhe acontecer?
  • Se Abby quisesse ter um amigo fora da roda fechada e esse amigo não fosse gay, o que aconteceria com ela?
  • Se Abby decidisse mudar de curso ou universidade, o que ou quem ela teria que enfrentar? Quem a apoiaria?
  • Se Abby tivesse escolhido o Parker ou qualquer outro carinha da universidade, o que teria acontecido com ela?
  • Por que que é ela quem sempre tem que ceder? Por que ela tem sempre que perdoar? Por que ninguém é compreensivo com ela?
  • Por que ninguém vê que ela pode resolver as coisas dela sozinha?
  • Se VOCÊ fosse a Abby e tivesse que gastar todas as suas energias pra fazer algo que quer (algo simples até) e tivesse que justificar pra Deus e o mundo, como VOCÊ se sentiria?

Outro simples exercício é escolher uma cena e inverter a situação. Se nessa inversão houver caso de sexismo (favorecendo a figura masculina), intolerância (desfavorecendo a figura feminina), difamação, incitação ao ódio ou violência, sim, é problemático. A grande questão hoje em dia é reconhecer isso. E ao reconhecer, não se desesperar, pois você não está sozinha(o) e há maneiras de melhor lidar. O que vemos na maioria dessas situações em que há um “consentimento” para uma transgressão (de espaço, de poder, de abusos), é o desejo de ser aceita, amada, respeitada. Podemos nós ter sido abusivos ou ter sido abusados, em inúmeras situações ou níveis, mas o importante é saber que somos pessoas e podemos ser suficientes. Essa consciência é que é libertadora.

É muito difícil que a vítima se dê conta que está vivendo um relacionamento abusivo. Por isso, a mulher precisa do apoio da família e de amigos que tenham uma visão de fora e percebam o que está havendo na relação. Para ajudar, o melhor é fazer a vítima entender, por si própria, que está inserida em uma relação tóxica. Uma abordagem agressiva e impaciente, que exija percepção imediata, não adianta: é necessário ajudar a vítima a se questionar e questionar sua posição dentro do relacionamento. O tratamento com um psicólogo é o método mais indicado para que uma real mudança aconteça, pois a mulher precisa compreender profundamente os problemas de sua relação para conseguir mudá-los. 
Beatriz Manfredini e Giulianna Muneratto. 
A louca não sou eu @aloucanaosoueu (instagram)

Obrigada por ler/ouvir até aqui.

Kleris Ribeiro
Coordenadora de Mídias e Bastidores no Clube do Livro Maranhão

Veja fotos do encontro!
Assista nos stories um pouco da conversa enquanto é tempo. Nos destaques do instagram @clubedolivroma, procure por “Encontros”.

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#clubedolivroma #vemproclube
#maranhãodeleitores

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